UM PAR DE OLHOS
Chovia muito. Chovia sempre. A mesma chuva arrastada e
monótona: o céu preto, pejado de infinitas
torneiras mínimas e pingantes. Era sempre de noite. Não porque fosse de noite,
mas porque debaixo das luzes artificiais da cidade total que era a Terra, a
natureza perdera o sentido. Ninguém dizia as estrelas. Dizia-se, por exemplo:
nt 2418. E sabia-se que era o lugar menor, a sul, na constelação de Centaurus, onde era feita a prospecção
de urânio – a propósito, estão a recrutar
engenheiros para comissões de três anos em nt 2418. Ninguém dizia: flor. Bem,
fora dos documentários e arquivos ninguém o diria, a menos que se estivesse a
referir a documentários e arquivos. Quais flores?
Repito o que fazia o sempre. Perpétua chuva de poluição.
Perpétua noite iluminada.
E também disto se fazia o sempre: acordar na mesma outra hora,
viver a mesma outra hora, a hora com vista para o fim. Perpétuo e diário fim. Era
isto a vida: fazer passar aqui, nesta hora, ovo cheio e fechado, sem o quebrar,
um fio. De esperança. Todos os dias, todos os canais de comunicação informavam
que eram os últimos dias – há mais de cem anos.
Porém, sob o escudo invisível e protector que cobria a Cidade, reparado em todas
as horas e por reparar em todas as horas, ao lado da humidade dos metais corroídos,
e apesar da concentração de água dentro das paredes, do aumento das doenças
respiratórias, e do sem fim das partidas em direcção à dispersão estrelar, milhares
de densos milhões habitavam ainda a Terra. Os últimos dias da Terra,
entenda-se. Sim, também disto se fazia o
sempre.
De entre os que a habitavam, excluída a sazonal classe
governante não executiva e não militar, evidentemente, havia os que não tinham
visto de saída: os ainda completamente animais. Por ironia, quais plantas,
enraizavam-se. Resilientes. De que vazio sideral lhes crescia o sonho? Nascidos
na altura da explosão nanotecnológica, tinham atingido o pico com ela e assim
mantinham extraordinária longevidade em belíssimo estado de conservação, sequer
eram afectados pelas novas alergias. O pensamento, o de origem, sem programação pré-fetal. Surpreendentemente, estes humanos tinham-se revelado mais capazes do que
os Genéticos da geração seguinte: a manipulação visara a perfeição e, afinal, verificara-se que a
criatividade nasce da imperfeição, do defeito, da falta. Da diferença. Uma tragédia
com grandes custos sociais – enfim, não vou fazer a história desse desencanto.
O certo é que a Geração Minoritária, como se auto-denominavam os completamente
animais, permanecia. Elástica, gerindo as falhas, resistindo e fazendo resistir
o núcleo original habitável, levando o mundo da estagnação ao impossível
reinício à custa de pura vontade e persistência. E abrindo o universo, sem o
viajar, para que outros o viajassem - só animais o fariam. É do animal a
securização do futuro da espécie. Na verdade, entre eles e a entropia, mais
ninguém. Hora com vista para o fim. A única coisa que a Geração Minoritária
queria, era tempo. Tempo para chegar ao futuro de si. E que a Terra durasse até
lá.
Este era o mundo quando Madalena saiu de casa, de
impermeável e guarda-chuva, às quatro da manhã como se fossem quatro da tarde.
Ou meio-dia. Tudo em qualquer altura. As vinte e quatro horas do dia abertas para tudo
em qualquer altura como só faz sentido em tempo de nos podermos salvar do quase nada
a todo o momento. O seu contacto no mercado negro enviara-lhe um bip. Tinha um
par de olhos. Tinha uma equipa. Tinha um bloco operatório.
Os olhos não haviam sido processados pelo sistema, garantira-lhe. Como se fosse preciso: eram de outro dos da Geração Minoritária – não se conseguia
fazer nada com os órgãos sensitivos destes animais. Neste caso, tão pouco anular a
memória retinal porque não havia um início. Não se conseguia fazer um reset,
disfuncionavam. Ainda por cima, nem se podia limpar os campos visuais
ligados à memória emocional, mesmo em pequenas coisas, elementares, por exemplo, o auto-foco por identidade de género sexual. Os olhos de um dos da Geração só
poderiam servir a outro dos da Geração - só eles conseguiriam gerir as
imprevistas ligações do sistema visual aos outros sistemas e a falta de
classificação imagética. Melhor dizendo, a eles e aos poucos dos seus afincados
descendentes que ao nascer já não se pertenciam, mas ao que havia por cumprir, filhos da dívida à Terra. E nem eram optimizados como os pais, um retrocesso de mais de dois séculos.
Ela era uma descendente. Pura. Tudo era carne, sangue e
ossos. Pensamento seu, sentimentos seus, herdados desde a primeira célula antes
dos primatas e até à última inspiração no último passo que dera na rua em
direcção ao contacto. Precisava deles. Nascera com nictalopia e já não se praticava
a técnica que reparara os olhos, ainda hoje de perfeita visão, da sua mãe. A
doença fora erradicada no tempo dos Genéticos.
E, de repente, via de novo sem mais sombras do que as
existentes. A médica:
- São perfeitos. Foi um sucesso. Fizemos a acomodação da
memória retinal por acopolamento.
- Sim, percebi. Tenho imagens novas arrumadas por semelhança
a desconhecidas: ao pensar nos meus pais, vi a mesa da sala de jantar posta para
o almoço e esta outra mesa, nesta casa de jantar, veio por junto. E nunca vi um
documentário sobre a Antiga Tóquio, onde agora fica o Senado. Espere. Isto não
é documental. Isto é um Primeiro Olhar. Ele viu Tóquio.
- Viu sim, era um viajante. Preparámos-lhe uma biopic para a
ajudar a adaptar-se às imagens guardadas na memória retinal.
- Obrigada.
- Incomoda-a que sejam de um homem?
- De todo. Ah, desculpe… só agora percebi, eu é que estou a
incomodá-la com o meu olhar. Não foi por mal. Nunca tinha visto porque eram tão
boas as mamas.
Esta história foi escrita a partir de uma surpreendente fotografia de Tóquio tirada pelo Vasco Grilo. O Vasco escreve aqui e escreve assim - apetece logo mais, não é? Não tenho a photo, mas não faz mal porque me lembro dela.